Agroecologia no prato: um projeto comunitário que envolve o ciclo completo do alimento
- Melissa Galdino
- 29 de jul.
- 8 min de leitura
Iniciativa, feita em diálogo com movimentos sociais, rede agroecológica feminina e espaço cultural no Jardim Monte Kemel, fortalece o diálogo entre agricultura e culinária e a parceria entre campo e cidade, para promover justiça alimentar em territórios periféricos de São Paulo

Em meio às quebradas da capital paulista, onde a infraestrutura é precária e o acesso à alimentação de qualidade é um desafio cotidiano, um conjunto de coletivos que atuam pela comida de verdade se uniu para promover uma jornada de construção de saberes e intercâmbio de fazeres. Tendo como base o protagonismo feminino, desenvolveu um projeto para mostrar que é possível plantar resistência, colher autonomia e servir dignidade.
Na comunidade do Jardim Monte Kemel, região da Vila Sônia, zona oeste de São Paulo, a agroecologia virou prática política, cultural e afetiva graças à articulação entre organizações comunitárias urbanas e uma iniciativa que envolve mulheres agricultoras do Vale do Ribeira.
É nesse contexto que se desenvolveu o Projeto Agroecologia no Prato, uma ação que promove a cidadania por meio da alimentação, da educação popular e da solidariedade.
Viabilizado por uma emenda parlamentar da Bancada Feminista do PSOL e coordenado pelo SEFRAS – Ação Social Franciscana, o projeto contou com a parceria de coletivos como o MUDA (Movimento Urbano de Agroecologia), o Coletivo Banquetaço e a campanha Gente é Pra Brilhar, Não Pra Morrer de Fome. Também teve oportunidade de promover uma aproximação dessas organizações e da comunidade local com o MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores e com o MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

Com ampla trajetória na luta por soberania alimentar e organização nos territórios, esses coletivos e movimentos contribuíram para fortalecer a articulação entre os povos do campo e da cidade, reforçando a proposta de que a produção de alimentos saudáveis deve ser feita por quem tem compromisso com a vida, com a terra e com o povo.
Quando os saberes e fazeres confluem
O processo se deu a partir do fortalecimento de uma base que já unia os dois territórios, o rural e o periférico. Ela foi constituída, há alguns anos, pela RAMA, Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras do Vale do Ribeira, formada por mulheres de origem quilombola, indígena e caiçara que produzem alimentos de forma agroecológica e solidária, e o EsparRama, um grupo articulador composto por organizações e movimentos sociais que apoiam a logística, a comunicação e a formação política em torno da alimentação como um direito.

É através dessa base que produtos agroecológicos chegam mensalmente à comunidade por meio da Feira Agroecológica da RAMA, um evento que vai além da comercialização: é também espaço de encontro, formação e reconstrução de laços entre quem planta e quem consome. Para que a feira aconteça com regularidade e os alimentos cheguem com preço justo a quem compra e renda digna a quem planta, existe um esforço coletivo de bastidores.
O projeto teve como base o histórico Espaço Cultural Monte Kemel, ativo há mais de 20 anos no bairro, que funciona como um verdadeiro ponto de cidadania e convivência. Foi ali que, entre janeiro e junho deste ano, aconteceram oficinas, rodas de conversa, vivências culinárias e formações com foco em agroecologia, alimentação saudável, economia solidária e protagonismo feminino.
Resultados que brotam do coletivo
Durante seu primeiro ciclo, o projeto realizou 26 oficinas distribuídas em dois cursos de formação. Um deles foi em Agroecologia, com 12 encontros divididos em 2 módulos - Cultivo e Compostagem (módulo 1) e Saúde e Cuidados (módulo 2), beneficiando diretamente cerca de 20 alunos/as. O outro foi em Cozinha, Cultura Alimentar e Ecogastronomia, composto por 14 encontros em um módulo único e com caráter profissionalizante, beneficiando diretamente outros/as 20 alunos/as. Ambos os cursos deram preferência a moradores/as da comunidade, bem como pessoas negras, LGBTQIA+ e integrantes de movimentos sociais.

Além dos cursos de formação, o projeto também promoveu atividades abertas, como mutirões na horta, cinedebate e feira cultural e de economia solidária. Elas reuniram jovens, mulheres e lideranças locais para discutir temas como saúde, meio ambiente, feminismo e soberania alimentar, fortaleceram os laços comunitários e geraram mobilização coletiva por melhores condições de vida.
Como um exemplo desse fortalecimento, podemos mencionar a criação do grupo Pães e Flores, que surgiu dentro da turma do curso de Agroecologia. Ele é composto por mulheres que passaram a se reunir quinzenalmente para aprender técnicas de panificação naturais e produzir pães saudáveis para a comunidade a preços populares. Há a proposta de montar uma pequena padaria coletiva no local e o grupo já está oferecendo seus pães nas festas realizadas no Espaço Cultural Monte Kemel, como a Festeira e o Arraiá.
Outro exemplo é a criação de um ciclo de vivências artivistas, a ser realizado em julho e agosto, em diálogo com o grupo de mulheres artesãs da comunidade, que estava um pouco desmobilizado. Ele será formado por oficinas criativas e um cinedebate de celebração final e as peças confeccionadas vão constituir um acervo coletivo para ser usado em atividades culturais e políticas.
Há, ainda, novas propostas e articulações sendo discutidas, a partir da experiência e do impulso do Agroecologia no Prato, bem como um impulsionamento de ações que já ocorriam, mas estavam precisando de reforço, como a reciclagem, a biblioteca, o sarau. Todas ganharam mais vida a partir da realização do projeto, repercutindo quantitativa e qualitativamente na dinâmica comunitária e para além dela, dialogando com outras iniciativas e inspirando novas ações.
Como as atividades abertas foram realizadas nos dias em que já ocorrem, mensalmente, as Feiras Agroecológicas da RAMA, já mencionadas anteriormente, foi possível ampliar a divulgação e a venda dos produtos que elas oferecem, fortalecendo a autonomia financeira e o reconhecimento do trabalho das mulheres do Vale do Ribeira que, por séculos, vêm cuidando da terra e alimentando comunidades.
O projeto também contribuiu para a reocupação qualificada do Espaço Cultural Monte Kemel, que teve sua horta reestruturada, com novos canteiros de hortaliças, temperos e plantas medicinais, ganhando escala para abastecer as atividades locais. Uma composteira com capacidade para absorver os resíduos orgânicos da cozinha também foi construída, o que garante adubo para o cultivo no local. Além disso, um sistema de drenagem foi implantado e a limpeza do cano que conduz as águas ao córrego lateral foi realizada, evitando inundações comuns na área externa do terreno.

Conheça os parceiros
SEFRAS – Ação Social Franciscana: organização que atua na defesa dos direitos humanos, justiça socioambiental e combate à fome, proponente oficial do projeto junto à prefeitura.
Espaço Cultural Monte Kemel: centro comunitário com mais de 20 anos de atuação, que abriga atividades culturais, educativas e agora as ações agroecológicas do projeto.
Bancada Feminista do PSOL: mandato coletivo de mulheres na Câmara Municipal de São Paulo que apoia políticas públicas de equidade, justiça social e sustentabilidade.
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho de São Paulo: instância em que está abrigado o programa Sampa+Rural, que promove as ações de Agroecologia no município.
MUDA (Movimento Urbano de Agroecologia): coletivo que promove agroecologia urbana por meio de hortas comunitárias, formações e ativismo ambiental.
Coletivo Banquetaço: rede nacional que luta pela soberania alimentar, conhecida por eventos públicos que celebram alimentos agroecológicos.
Campanha Gente é Pra Brilhar, Não Pra Morrer de Fome: movimento que combate a fome nas periferias, promovendo solidariedade e direitos humanos.
RAMA (Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras do Vale do Ribeira): rede de mulheres agricultoras quilombolas, indígenas e caiçaras que produzem alimentos agroecológicos com saberes tradicionais.
EsparRama: coletivo de organizações urbanas que apoia a RAMA na logística, organização de feiras e formação política.
MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores): movimento social camponês que defende a agricultura familiar, reforma agrária e soberania alimentar, com forte atuação no protagonismo feminino.
MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto): movimento social, político e popular, fundado em 1997, que atua pelo direito à moradia, pela reforma urbanística e pelo combate às desigualdades socioeconômicas.
Caminhos para multiplicação e políticas públicas
O Projeto Agroecologia no Prato teve como base estrutural a promoção do diálogo comunitário sobre as relações indissociáveis entre a agricultura agroecológica, tanto em esfera urbana como rural e agroflorestal, e a comida de verdade, a que promove a saúde do solo, das pessoas e da sociedade.
A experiência concreta do Jardim Monte Kemel pode se transformar em modelo de resistência e inovação social, abrindo possibilidades para a multiplicação desse formato em outras periferias da capital paulista e de outras cidades, ampliando o acesso a alimentos agroecológicos a preços justos, promovendo o consumo responsável e fortalecendo redes solidárias.
O protagonismo feminino, por parte das mulheres da comunidade local e de quilombolas, indígenas e camponesas, reafirma a importância de políticas públicas que reconheçam e incentivem sua atuação na agricultura familiar e urbana, ampliando acesso à capacitação, recursos e espaços de poder.
Além disso, o projeto ressalta o papel fundamental da educação popular e da formação política como alicerces para a construção coletiva de alternativas sustentáveis. Políticas públicas que integrem saúde, assistência social, agricultura familiar e meio ambiente podem potencializar esses efeitos e garantir que a Agroecologia seja efetivamente valorizada como instrumento de soberania alimentar e justiça social.
A parceria entre o poder público, tanto representado pela Bancada Feminista do PSOL como pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho, e organizações da sociedade civil, como SEFRAS, MUDA, Banquetaço e Gente é Pra Brilhar, mostra a relevância de investimentos públicos voltados à agroecologia urbana, feiras comunitárias e apoio às agricultoras familiares. A experiência também reforça a necessidade de políticas integradas capazes de enfrentar a fome estrutural, valorizando as iniciativas camponesas e urbanas articuladas.
Assim, o Projeto Agroecologia no Prato não é apenas uma ação local; é uma referência para a formulação de políticas públicas inclusivas e para a ampliação de redes de agroecologia que promovem um futuro mais justo, saudável e sustentável para as cidades e o campo.
Comida é afeto, é luta, é futuro
Muito além de uma iniciativa pontual, o Agroecologia no Prato representa uma estratégia de transformação social enraizada no território. Une mulheres que cuidam da quebrada em torno da busca por alimentos saudáveis, relações fraternas e justiça social, ao mesmo tempo que incentiva o diálogo delas com as mulheres que resistem nos rincões do Vale do Ribeira. Trata-se de fortalecer uma sinergia poderosa entre quem insiste na construção de alternativas nas bordas da metrópole e quem atua nas regiões em que a disputa pela terra significa a preservação ou a destruição de ecossistemas e modos de vida. Trata-se, sobretudo, de unir o ciclo do alimento com a dignidade.
Ao semear solidariedade e colher justiça alimentar, essa rede nos lembra que comida não é mercadoria: é direito, é cultura, é afeto. E quando mulheres se organizam em torno da terra e da vida — com o apoio de movimentos e organizações sociais do setor agroecológico —, mesmo contra a corrente, elas nos mostram que outro modelo de cidade, de economia e de sociedade é não só possível, mas já está em curso.
“O Sefras apoiou a execução desta emenda como forma de fortalecer as iniciativas e os conhecimentos dos Movimentos e grupos de ativismo na agenda da Segurança e Soberania Alimentar. Este projeto evidenciou a importância da formação prática sobre o tema, realizada a partir e dentro das próprias comunidades. Enfrentar a fome é urgente, mas é igualmente necessário combater a ausência de princípios comunitários e a dificuldade de acesso a uma alimentação saudável. Criar espaços auto-organizados é um chamado para resistir a um sistema econômico que explora e mata. Que os resultados deste projeto sirvam de base para a multiplicação desse tipo de iniciativa em outras comunidades e territórios por todo o Brasil”. (Fábio Paes, Sefras)
“Para nós, movimentos sociais integrantes do projeto, o Agroecologia no Prato foi um marco histórico: uniu teoria, prática e atuação em rede - tanto localmente como entre territórios -, visando uma transformação estrutural na forma como nos relacionamos com o ciclo agroalimentar em sua integralidade. E tudo isso com muita criatividade, solidariedade e reverência pela dimensão sagrada da nossa Mãe Terra. Só podemos agradecer a todas as pessoas que contribuíram com essa jornada de aprendizado e renovar nossa missão de seguir semeando a harmonia ambiental, a justiça social e os saberes culturais.” (Susana Prizendt, da coordenação do projeto)
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