A Articulação Brasileira pela Economia de Francisco, movimento iniciado após o chamado do Papa Francisco por uma nova Economia, convoca a história e a figura de Clara de Assis como referência para realmar a economia. Trata-se de uma grande visão, tornando o Brasil o primeiro país que articulou o debate em torno de uma Economia de Francisco e Clara.
Todavia, fica uma pergunta: Podemos repensar uma economia por Clara de Assis que não seja apenas a partir da característica de ser discípula de Francisco? A resposta é sim e muito mais. Podemos nos inspirar nessa grande mulher para pensar uma proposta de economia hoje.
Como todos sabem, Clara de Assis foi uma grande companheira de Francisco, a tal ponto de ser chamada de mãe do carisma franciscano, pois, juntos, Clara e Francisco complementam uma proposta robusta e revolucionária. Mas também é bem sabido que a figura da Mãe do carisma foi pouco reconhecida durante a história, o que gerou pouquíssimas reflexões sobre sua visão de indivíduo e de sociedade. Quase sempre se olha para a Clara como quem quer ver Francisco.
Reconhecer Clara enquanto uma mulher que pertence ao carisma franciscano, sua visão de mundo e de economia, é permitir a integralidade da experiência fundante do carisma. E, com esse breve artigo, pretendemos apresentar um pouco dessa mulher por ela mesma.
Clara e o Privilégio da Pobreza
Clara de Assis pertencia a uma família nobre e extremamente rica. No período em que viveu, a Europa atravessou o que se chama de baixa idade média – de crescimento demográfico, renascimento comercial e inovações técnicas e agrícolas. Sua família atuava no comércio de armas em um mundo em estado de guerra – Cruzadas.
Como nobre, entendia como a sua riqueza circulava e quais as consequências dessa economia que já se consolidava na propriedade privada e na exploração do trabalho pela cobrança de impostos aos pobres e não proprietários.
Clara rompe com a estrutura familiar e resolve seguir Francisco, fazendo da capelinha de São Damião a sua morada. Essa postura não seria algo ruim para sua família, se não fosse a escolha de uma vida de pobreza.
Os conventos medievais eram marcados pela presença de mulheres nobres, que ao adentrar na vida religiosa se tornavam “nobres do mosteiro”. Era muito comum tais mulheres terem servos para lhe ajudar em sua vida. As nobres levavam os seus dotes para o mosteiro para “qualificar” os serviços prestados a elas. No caso de Clara foi justamente ao contrário: ela trocou os benefícios da nobreza para pobreza do mosteiro de São Damião.
Aqui não se trata apenas de uma ascese, um ato de penitência, mas de construir um espaço que configurasse uma nova proposta de vida e que tivesse uma outra relação entre as irmãs que conviviam dentro do mosteiro. Clara não renunciou a um benefício pessoal, ela renunciou uma forma de ser e estar na sociedade e na vida eclesial. Escolheu fundar uma nova proposta de vida, e essa vida passa pela ideia de que todas eram damas pobres, fossem elas de uma linhagem nobre ou não. Sua predefinição foi a comunhão e igualdade entre as Irmãs.
Nasce das mãos de Clara uma nova forma de vida baseada na construção do privilégio da pobreza. Aqui, não se trata da pobreza vinculada ao desumano e a indigência, mas de entender que é do “meio” dos empobrecidos que surge a nova proposta de vida (Cf. RCL 6, 2-4; 8, 3-5). Assim como em Jesus, aquele que não tinha nem onde reclinar a cabeça iria derrubar os poderosos, em Clara a proposta nasce em ser pobre com o Pobre Jesus e com os demais empobrecidos (Cf. RCL 6, 7). Clara deseja se unificar à fonte de onde brota a proposta de um tempo novo.
É sempre válido lembrar que a sua forma de entender a pobreza estava alinhada a uma visão de cuidado e partilha (Cf. RCL 7,5). Não era permitido o acúmulo de recursos ou terras, mas era a partilha que imperava como forma de cuidado para com as irmãs (Cf. LCL 15,7).
Clara partia da necessidade de cada irmã, como na lendária figura da distribuição dos pães. O alimento, o pão, era distribuído primeiramente às que mais precisavam e a última era ela. A economia de Clara era em favor das mais necessitadas e nunca em benefício de quem administrava. A simplicidade não se opunha a atender as necessidades, antes era final de misericórdia Cf. RCL 8, 14-15).
Cabe ainda entender que a sua forma de vida não foi tão facilmente digerida pela Igreja, pois sua viabilização desorganizaria a Igreja. A sua intuição de um novo caminho não passava apenas pela relação entre as irmãs, ou com sua forma de entender o projeto de Deus e os relacionamentos internos, mas também proclama uma visão para fora do mosteiro, tocando a Igreja e o seu relacionamento com o mundo.
Era muito comum naquele tempo que os conventos e mosteiros fossem vistos como um espaço da Igreja para o seu possível uso, como abrigar as tropas em tempos de combates ou utilizar para abrigar um recurso ou qualquer outra utilidade que pudesse servir a estrutura de uma instituição que estava em guerra. Mas com a proposta de não ter, do privilégio de pobreza, ela negava essa relação com o poder eclesiástico. Como abrigar tropas e recursos em uma pequena casa desprotegida fora dos muros da cidade? E mais, como permitir que essas mulheres apontem para uma nova modalidade de vida como essa?
O “Privilégio da Pobreza” é todo um novo horizonte a ser visto, mas o que mais cabe para nós agora, é a figura de uma mulher que sabe o que quer e deseja construir uma proposta de vida que não cabe o poderio sobre o seu propósito. Clara só conseguiu a bula com seu “privilégio de pobreza” (licença para não ter terras e nem acumular recursos e outros benefícios) nas vésperas de sua morte. Clara é símbolo de um projeto persistente, ela é resistência como tantas outras mulheres de nosso tempo.
Clara do cuidado com todas as criaturas
Da vida primeira de Tomás de Celano (18) extraímos relatos potentes de quem foi Santa Clara. Nas palavras de Celano, Clara foi “Nobre pelo Sangue, mais nobre pela graça, virgem no corpo, puríssima no espírito; jovem em idade, adulta na prudência; constante nos propósitos, ardente e entusiasta de amor a Deus; exornada de sabedoria e humildade, Clara de nome, mais clara ainda pela sua vida, claríssima em virtudes”. Foi essa menina, apaixonada pelo despojamento que descobriu a partir de Francisco, que se mostrou imensidão de força, de sabedoria e de cuidado.
Na contemplação do Cristo pobre de São Damião, Clara dirigia seu olhar de esperança, de respeito e de maravilhamento às pessoas. Nutria especial atenção às irmãs doentes e a maioria dos seus milagres, durante sua vida e após sua morte, auxiliaram doentes e enfermos.
Clara era toda compaixão. Carinhosa com suas irmãs, ajoelhava-se e chorava com elas diante dos seus problemas e angústias. No sétimo capítulo de sua Regra, a primeira da Igreja escrita por uma mulher, o que já demonstra tanta sabedoria e irreverência, diz que “todas devem prover e servir suas irmãs enfermas, como gostariam de ser servidas se tivessem alguma doença” (RCL 7,5). Que o olhar cuidadoso de Santa Clara nos faça ver as necessidades de quem hoje sofre e que, por isso, possamos lutar para que todas e todos tenham assistência médica de qualidade, que tenhamos sempre governantes que prezem pela vida e pela saúde, e que o cuidado atinja verdadeiramente todo ser.
Mais do que isso, que o debate das construções de novas economias seja também permeado pelo cuidado: no provimento das condições de existência equitativas, na concessão de direitos a todas e todos, e na atenção com a Casa Comum. Que o exemplo vivo da Santa de Assis, que no seu Testamento convidou as irmãs a demonstrarem, por meio de boas obras, o amor que nutrem entre si, seja nosso guia.
E todas as reflexões que nos forem proporcionadas nos convidem também a zelar pelo amor na construção de novas economias e nos impulsionem à mais efetiva demonstração desse amor entre os seres humanos e a Mãe Terra: a solidariedade, as lutas sociais, o cuidado e a atenção a quem, na sociedade, mais precisa de cuidado.
Clara como inspiração para Economias possíveis
Sua proposta aponta para um lugar onde o valor do dinheiro e do território não está acima da dignidade da comunidade. Clara possibilita, a certeza que o caminho de uma nova economia não se faz com práticas desiguais.
Para ela, a economia desejada é a economia dos pobres. Sua presença convoca cada um e cada uma de nós a pensar para fora dos muros das cidades, para fora da segurança de uma economia que protege uns poucos, concentra cada vez mais a renda, que restringe o acesso dos pobres ao que é produzido, e inviabiliza a sustentabilidade das pequenas comunidades, aprofundando as desigualdades.
Hoje, as mulheres, sobretudo, as mulheres periféricas, sofrem pela falta de garantias sociais. Houve avanços nos últimos tempos, no entanto, dado o modus operandi da necropolítica faceta do ultra neoliberalismo, o desafio de fazer valer seus direitos passa pelo crivo de uma sociedade ainda arraigada pelo machismo.
No plano macro político, não seria exagero, de modo geral, afirmar que todas as mulheres já sofreram ou sofrerão algum tipo de agressão psicológica ou física. Na última pesquisa do Datafolha, 51,5% dos entrevistados presenciaram algum tipo de violência contra a mulher.
A filósofa Italiana Silvia Federici, ao refletir uma lógica econômica que não reconhece o trabalho das mulheres sentenciou: “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago” em relação ao não reconhecimento do trabalho doméstico como um trabalho que deveria ser reconhecido como um motor da economia.
As realidades vividas por Clara nos inspiram nas releituras e contra condutas diante da lógica do capitalismo. Um chamado a não aceitar as relações sociais e de produção, baseadas na opressão. Sua decisão de ruptura com as estruturas hegemônicas de poder nos dá pistas, até hoje, de como podemos repensar e agir sob a ética da Casa Comum, onde o desenvolvimento econômico e social está submetido ao respeito ao meio ambiente e ao trabalho digno de todos e todas, assim como a colaboração e a valorização do papel e da contribuição das mulheres na Igreja e na sociedade.
Com a proposta de realmar a economia colocamos Clara como local onde se encontram tantas outras mulheres que ousaram ser e dizer-se diferente do poder dominador. Tanto Clara como Francisco, como Marielle, Dorothy, Chico Mendes, Margarida, Josimo, e tantos (as) são provocações e inspirações, para pensar, sentir e agir diante de uma realidade que brutaliza nossos corpos diariamente e busca nos disciplinar a não buscarmos a mudança.
Clara soube romper o tecido da indiferença e costurar o que hoje chamamos de ecologia integral, mas que sempre entendemos como interdependência e terradependência que está ligada à nossa vida. Soube fazer isso e por isso teve um fim econômico: a partilha e a colaboração. Somos corpos econômicos, nosso bairro e cidade são territórios econômicos, e práticas econômicas milenaristas (ao pensar na economia comunitária indígena) ou dos movimentos de economia solidária, impõem que outros mundos são possíveis porque existem e resistem diante da barbárie do sistema-mundo capitalista.
A Economia de Clara inspira o século XXI a política do Comum, que é estabelecermos contra condutas que apontem para experiências coletivistas de partilha, de colaboração e de superação de modelos individualistas, competitivos e consumistas. Essa discussão macroeconômica toma fôlego com os alertas dos limites climáticos e se encontra com a proposta política de decrescimento na Europa e do Bem Viver dos Povos Ameríndios na América Latina.
Sentimo-nos hoje vocacionadas e vocacionados a consolidar inspirações comunitárias libertadoras, assumidas com dinamismo e apreço por Clara, Francisco e pela comunidade fundante. A Ruah libertadora que moveu o coração e a vida de Clara rompeu os bloqueios e as cadeias sociais. Ela reconhece a necessidade desta mesma liberdade para o seu modo e estilo de vida.
Na busca pela sororidade convidamos para a roda todas as mulheres e homens que hoje buscam renovar a Igreja e o mundo, na lógica da circularidade, contemplação das realidades, da beleza das experiências comunitárias integralizando o feminino que nos habita, reconhecendo o sagrado de cada pessoa corresponsável na construção de um novo tempo!
Autores: Frei Marx Rodrigues dos Reis, OFM, Talita Guimarães, economista, contribui na área de Advocacy do SEFRAS e compõe a Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC), Irmã Fátima Lessa Ribas, IFPCC, Eduardo Brasileiro, educador e sociólogo, integra a Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC) e Gabriela Consolaro Nabozny, mestranda em direito ecológico, Secretária Nacional de Formação da Juventude Franciscana (JUFRA) integra a Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC)
Bibliografia
FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS (FFC). Apresentação Sergio M. DAL MORO. Tradução Celso Márcio Teixeira… (et al.) Petrópolis: Vozes FFB, 2004.
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